quarta-feira, 16 de maio de 2007

A velha

--==ELE==--

São duas da tarde em ponto, não sopra uma aragem sequer, o Sol aperta e a pele começa a criar aquelas gotículas de suor salgado numa tentativa desesperada de refrescar o corpo cansado de correr. Transpira satisfação.O cenário não é muito diferente do que ele está habituado, a rua ladeada de prédios de 2 andares sem elevador e salpicada com uma ou outra vivenda tudo com um aspecto mimoso e cuidado. Desce essa rua a correr como já a tinha descido milhares de vezes, só que desta vez além da pressa leva consigo uma série de questões: "quem era a pessoa com quem tinha falado?", "Como seria tal personagem?", "porquê que esta conversa tinha acontecido?", "será alguém que conheço a querer gozar comigo?", "será que não?".
Enquanto se pergunta a si mesmo vezes sem conta estas perguntas nas mais variadas formas possíveis,encontra uma velhota que descia a mesma rua com o carrinho das compras azul. Torce o torso comprimindo o peito e, com alguma perícia esgueira-se no pouco espaço entre a senhora que se assusta e a carrinha do pintor, estacionada à pressa em cima do passeio. "Estou atrasado" pensa para si.

Chegado à estação ferroviária coloca as mãos nos joelhos, tentando respirar mais ar do que o permitido pelos pulmões, pingando cansaço pela ponta do nariz. Procura em volta e não a vê. Estão apenas duas pessoas, dois homens com mais de 40 sentados na conversa. Confirma atentamente o relógio, são 14:05, tinha combinado ás 14:03, e nem mais um segundo e agora não está ninguém na estação. "será que cheguei cedo? ou tarde? terá ela já se ido embora? o que fazer?"...
Passam 10 minutos e nada muda. Ninguém aparece. Os carris lá ao fundo junto à curva parecem bailar ao sabor do calor.

"Como é que me atrasei?" Não conformado, levanta-se e hesitando a cada passo, regressa pelo mesmo caminho. Andando.

Frio, um arrepio que lhe trepa pela pele e quase que o faz soltar um gemido de prazer. Teve a inovadora ideia de se esgueirar para um prédio com a porta semi-aberta que encontrou pelo caminho, imaginou que poderia estar um pouco menos calor lá dentro, mas ao entrar apercebeu-se que não só estava uma grande diferença de temperatura como era um ar húmido e antigo.
O tempo que os seus olhos levaram a habituar-se ao escuro e ao interior do edifício notou uma fresca fragrância no ar...um perfume esquecido naquela entrada desgastada pelo tempo. Gostou. Avançou pelo primeiro vão de escadas até ao R/c. As portas dos apartamentos eram antigas e de pouca segurança, havia vasos de plantas raquíticas no piso (sabe-se lá como sobrevivem aqui) e, avançando para o próximo vão, sentou-se nos primeiros degraus. Está baralhado. Aquela miúda que ligou por engano, com uma voz doce e simpática, com a qual falou mais de 2 horas ao telefone, que o fez ficar sem almoço e a correr estrada fora para ir ter com ela não apareceu. Perdeu a fome, a vontade de voltar...e começou a imaginar...

Veio-lhe à cabeça que ela cheirava a esta mesma fragância que lhe saltava nas narinas, que era alta e atlética, cabelos castanho escuro e um nariz arrebitado, que ela estava na estação à sua espera, meio ansiosa e tímida, meio atrevida e curiosa. Imaginou a conversa, os trejeitos, a forma como se criavam covas na face dela quando se ria dos disparates que diziam, como andava em direcção à praia e como se sentava no muro, ficando lado a lado a trocar perguntas e respostas tentando se conhecer.
Pareceu-lhe tudo efémero. Pesaram-lhe as pálpebras. Lembrou-se então das 4 horas que dormiu na noite anterior e da festa que foi ir para a praia na noite anterior com amigos. Que vontade de o repetir e que falta de forças para se mover.Adormeceu.

acorda, o telemóvel começou a tocar, enchendo a escadaria com aquele som metálico... Desligou-se por si só. O número no ecrã do telemóvel, que se tivesse ombros encolhia-os, resumia-se a "número ocultado", pedindo desculpa por ter acordado para nada... ouve sons na escadas mais a cima, imobiliza-se tentando perceber... mas o som desaparece. Alguém dentro de um dos pisos que deve ter espreitado à porta.Resta silêncio e escuridão...novamente.

Levanta-se cabisbaixo e vai resumir a sua vida, comer, que a barriga aperta. Sente-se chateado e de mau humor, sente-se enganado. Esperava mais que isto. Começa a dirigir-se para as escadas mas as pernas trôpegas de estar mal sentado tremem-lhe e pára durante uns segundos deixando o sangue correr livremente pernas fora...

A porta que anteriormente encontrara semi-aberta é encontrada fechada. Arrepende-se de a ter fechado quando após tentativas várias não a consegue abrir sem a chave. Acto contínuo ouve um som escadas fora que lhe pareceu um grito/lamento a dizer "Não!", ao virar o corpo para o interior do edifício, volta a torcer-se dando uma volta de 360º sobre si mesmo. A velhota do saco azul abria a porta com a chave zangada e ouviu-a dizer: "este jovens, não basta andarem aí aos saltos no meio da rua agora também entram em prédios alheios, vivo aqui desde....e não têm respeito nenhum...sai já daqui!". Ele saiu a correr. confuso e aborrecido, frustrado e estranho... perdida uma tarde e um sonho... que vida....sobe agora o resto da rua para a sua casa.

--==ELA==--

Contava carneiros, ovelhas e afins, lembrava do que podia ou tentava esquecer tudo, revolvia-se sobre si mesmo desfazendo a réstia de composição que os seus lençóis ainda tinham. Se não fosse este calor infernal...mas também a sua cabeça estava "quente". Amanheceu e o sono não aparecia.... não dormia bem há 2 noites e ainda não tinham passado 24 horas desde que o seu namoro terminava, desta vez pensava ela, definitivamente.
Passados 4 anos de namoro com um rapaz que nunca chegou bem a decidir se gostava dele ou não, ou por preguiça, ou por decisão do momento o pobre rapaz nunca chegou a saber ao certo o quanto ela gostou dele... é o que lhe custa mais.
Levanta-se após o sol nascer e perde hora e meia num banho de imersão com a água relativamente fresca...gasta outra hora com cremes e perfumes, numa composição e ordem que ela acha particularmente pessoal e divertida. dá-lhe prazer cuidar dela assim. Toma o pequeno almoço enquanto lê o fim de um livro, tentando não se lembrar de quem lho ofereceu. Está de férias e não tem nada combinado ou por fazer. E sente o desespero a crescer dentro dela. Não lhe apetece ir para a praia sozinha, não sente o mínimo de vontade de ir tentar ter conversas normais quando não lhe sai da cabeça aquele assunto.
Pega no telemóvel e liga o número que sempre ligou, da sua melhor amiga e confidente procurando alguém com quem partilhar as mágoas e desgostos. Precisa de ouvir alguém dizer "fizeste bem" porque sabe que não fez e contava com ela para essa missão, quem sabe, até se rir um bocado.
Ao atenderem, ouve uma voz rouca e pouco segura "t t ...tou?" masculina... olha para o telemóvel tentando perceber se o número que ligou era o certo e ouve novamente "tou?"...

"tou" , responde.
"posso falar com a diana?"
"podes, não faz mal"
"quem fala?"
"fala o dorminhoco"
"desculpa" - diz ela
"não faz mal, tinha mesmo de acordar. Obrigado por teres ligado"
Não sabia quem falava e tinha quase a certeza que se tinha enganado no numero, aquela mania de escrever o número de cabeça e não ir à lista já lhe tinha custado umas quantas conversas indesejáveis.. mas esta estava a ser diferente...
"acho que me enganei no numero"
"é bem provável, mas não penses que te escapas assim tão facilmente"
"então porquê?"
"porque agora que me acordaste vais ter de me ajudar"
"ajudar? não estou a perceber"
"é assim...antes disso, podes falar ou vais gastar muito?"
"posso, só pago o primeiro minuto...promoções"
"ah sim? ainda bem... porque eu não sei o que vestir hoje..."
"(risos) isso não é problema meu"
"eu sei, eu sei, mas podias-me ajudar.. qual é a tua cor favorita?"
Confiar ou não confiar, é aqui que ela se põe a pensar, uma pergunta pessoal...será que lhe digo a verdade? será que invento?
"laranja!"
"viste? foi fácil.. agora diz-me... o que combina com laranja?"
...
Ela nem deu pelo tempo a passar e apesar da chamada ter caído ela voltou a ligar-lhe, e falaram durante muito tempo, ela nem se apercebeu o quanto. Era exactamente o que ela precisava, alguém novo, diferente e simpático pela vida dentro. falaram de tudo, ela contou-lhe muito sobre a relação passada ela, o que correu mal e a situação dela, ele foi mais que compreensivo.
É o bom dos diálogos telefónicos, as pessoas falam mais, por não obter uma resposta visual do interlocutor, acaba-se por transferir para essa imagem a imagem que gostávamos que eles tivessem e assim ela fez. sentiu-se melhor, mais à vontade, mais solta....
o tempo foi passando e fez uma loucura...
"e se fossemos beber um café?"
"pode ser?"
"daqui a 30 minutos exactamente?"
"pode ser que já estou despachada"
"na estação?"
"sim"
"mas nem mais um minuto, se à hora certa não estiveres lá ou eu não estiver lá, fica sem efeito. combinado?"
"combinadíssimo!!!"
"até já"
"até já"

Eram 13:54 e ela já estava na estação. faltavam exactamente 9 minutos para a hora combinada.
Esperava ansiosa pela passagem do tempo. Como seria ele? gostou da voz e da forma de falar, da ternura das palavras e da atenção que lhe deu... será que era bonito, ou seria feio? Lembrou-se então de uma conversa que teve com uma amiga que lhe contou ter tido um encontro assim também às cegas, que adorou a conversa mas ao vivo as coisas eram bem diferentes, mais feias... e ficou na dúvida.

Sentada no escuro via passar a hora certa, o minuto seguinte e o próximo. A senhora com quem se cruzara tinha tentado dar-lhe um lenço, mas agora sente-se arrependida não ter aceite, chora calada soluços de dúvida, de impotência para com ela e com vontade de voltar a trás e corrigir o que achou mal... não devia ter deixado a estação. Nem que fosse só para lhe dizer que se ia embora. Não se liga para pessoas e depois não se aparece. Passam mais uns minutos.

Fechada naquele segundo andar, topo de lugar nenhum, escuro e fresco, pensava na vida e no que a fez chegar aquele ponto, aquilo que a mudou e aquilo que ela permitiu que a mudasse. Pensou nos bons e maus momentos que teve na relação e não conseguia pensar em nada mais que a relação... por breves segundos ainda pensou que ainda fazia parte dela...mas não estava arrependida. Ouviu uns barulhos mais a baixo, mas terminaram com a mesma leveza com que começaram. encolheu-se pra não ser vista, mesmo com a negrume que a rodeava e meteu-se mais há vontade quando terminou. Lembrou-se então do rapaz e da conversa que teve com ele. O bem que sentiu e o à vontade com que despejou cá pra fora o que lhe ia na alma a um perfeito estranho e o quão atencioso ele fora ouvindo tudo, tentando dizimar qualquer resto de mágoa dela e o carinhoso que foi dizendo coisas como "haverá melhores momentos na tua vida, alguns tão grandiosos que te farão esquecer todos os outros, e é por esses momentos que deves procurar se queres esquecer seja o que for da tua vida"....

Tenho de lhe pedir desculpa, tenho de voltar a falar com ele e tentar explicar porque falhei...vou-lhe ligar.

Que é que está a tocar? Pânico! Onde é que se desliga? Ele está aqui nas escadas comigo... toca uma ultima vez..."o que é que faço? não consigo pensar!" ela debate-se se deve falar ou não, dizer alguma coisa ou ficar calada. o telemóvel começa a tocar para mostrar o dinheiro no cartão, som que ela abafa prontamente tentando não revelar a sua presença...Não sabe o que fazer. Espreita tentando não ser vista e vê um rapaz, estatura normal e cabelo escuro, cabeça em baixo a levantar-se,dar 2 passos e parar,sacudir as pernas...o seu telemóvel vibra. "novas mensagens 1"
"Mostrar"
"eu sei que apenas terminamos há pouco tempo.sei que não queres voltar para mim.que nunca soubeste o quanto gostas de mim se e que alguma vez gostaste.por isso quero que saibas que n quero que me voltes a falar,quero que me esqueças e que facas algo mais útil da tua vida q apenas essa desculpa estúpida que e existir.não vais ter nada melhor que o que tiveste cmg.és uma lastima de pessoa.mais,eu já tenho namorada,uma pessoa a serio e uma relação a serio.adeus"
Caiu-lhe tudo ao chão...sentiu-se realmente uma lastima e solta um não!....e aterra no soalho de madeira a chorar.


--==ELE==--
São oito da noite e sai de casa, vai ao café centrar ter com o pessoal.alem da velha rezingona, as únicas pessoas com quem vai falar.vê uns pirilampos azuis a piscar enquanto desce a sua rua imagina alguma viatura de transporte de idosos, mais que comum naquela zona. Imagina a velhota (coitada) a passar de maca e sacode a cabeça com tamanho disparate...
Qual o espanto quando se depara com uma ambulância dos bombeiros e uma viatura da policia parados a porta do mesmo prédio onde esteve hoje a tarde...nem queria acreditar...a velha estava de roupão com mais gente a barafustar com um policia enquanto o seu colega se encontrava junto ao carro a escrever num caderninho:
`que aconteceu` pergunta ao policia
`uma rapariga q caiu das escadas, faleceu.`
`quando?`
`hoje a tarde.conhece alguem que viva ou visite este edifício?`
`n, obrigado`
Surpreendido,recomeça a andar e a rever tudo o que aconteceu nesse dia,la dentro...




Ao passar a maca com o corpo fechado no saco preto, o conteúdo começa a cantar...`to the left to the left` chamando a atenção dos demais...a velha começa a gritar... Foi ele..apontando pro rapaz que descia a rua... Foi ele que a matou...eu vi!! Eu vi!

A pele começa a criar aquelas gotículas de suor salgado numa tentativa desesperada enquanto descia a rua a correr...

1 comentário:

Anónimo disse...

No encontro e no desencontro da vida, neste caso por minutos, por uma palavra, um acto, ou até por todo um tempo que Teima em não chegar,que por vezes até custa passar.
Ponteiros que dançam ao sabor de cada relógio e de quem os tráz agarrados.
Por cada segundo cada minuto cada hora que foi vivida ora intensamente, ora de um modo mais passional...