segunda-feira, 9 de julho de 2007

Contrário


A água corre a meu lado ziguezagueando entre as pedras, escorrendo cristalina, cinzelando esculturas durante milhares de anos para hoje, enquanto corro, apreciar esta vista que me aclara a mente.
Paro para recuperar o fôlego. Estou a descer o vale glaciar da Serra da estrela e sinto-me bem. Devia estar chateado por causa da brincadeira de mau gosto que me acabaram de fazer, mas nem isso me aborrece.
Ainda nem há 5 horas estava a dormir descansado e aconchegado na minha cama quente e confortável, agora encontro-me rodeado de neve e neblina, sozinho neste universo alternativo e sombrio.
Dos vários sítios que os meus amigos escolheram para parar, a nascente do Zêzere foi um deles e, neste caso, o último. No meio da brincadeira, das fotos mal tiradas e das lutas de neve desleais acabei por ficar fora do carro quando eles arrancaram em direcção a Manteigas. Podia esperar, zangar-me e ligar-lhes pra me virem buscar. Podia fazer pior e pensar a quem atribuir as culpas e nas consequências que iria criar quando nos juntássemos todos...mas não.
Aproveitei para passear um pouco, disfrutar de uma estrada sinuosa, de um caminho ancestral perdido na serra, local de passagem automóvel sem cantos para parar e em certos sítios,cruzar.
Que vista majestosa, que ar fresco e limpo. Ar lavado que limpa cá dentro. Desentope a alma.
Vejo o rio, ainda bébé que, do meu lado direito, se encolhe no fundo do vale, ganhando coragem para alimentar os viveiros de peixes que vai encontrar a juzante, mesmo à entrada da vila. O mesmo rio que em Constância (terra dos namorados,será?) apaixona-se, numa dança de ondas, de sabores e ideais diferentes, desmaterializa-se e funde-se transferindo para um renovado tejo, mais encorpado, mais decidido e completo toda a sua essência saber e alma, ganha por experiência ao passar das terras.
Cruzo-me com uma carroça que segue, empurrando uma mula cansada de viver, na direcção oposta. Vai uma pessoa sentada com um chicote velho na mão. Será que vai usá-lo? Será que é apenas um objecto de poder perante a besta? Existe uma troca de comprimentos, de olhares e uma colisão de mundos. Apercebo-me que tal personagem provavelmente nunca irá conhecer o mundo para além de alguns quilómetros à volta, nunca irá conseguir medir o mundo, mas apercebo-me também que existe um outro mundo, mais rotineiro e simples, mais pacífico e amistoso que eu nunca farei parte. Cada um de nós tem o seu papel.
Procuro em vão o veículo que me abandonou.Corro mais um pouco para palmilhar os 3km que me restam de natureza pura até Manteigas. Porquê Manteigas? Desde o "vamos às manteigas" (talvez dito pelo próprio Júlio César!!) até D. Sancho I que Manteigas, situada no fundo de um vale único em Portugal, apresenta características de uma, agora vila, aldeia mítica, com casas de pedra, neve nos telhados e um sorriso nos lábios. Um lugar esquecido no tempo.
Gosto do sítio e da casa onde vou passar os próximos 2 dias.
Vale a pena vir passar apenas estes dias únicos no ano à neve e ao Contrário do meu ser.

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